Colaborador - Ivan Horcaio

31-03-2020 11h37

A ideia de justiça em Roma (Parte 1)

3.1. Racionalidade ao fenômeno jurídico

O Direito Romano não pode ser considerado um sistema jurídico, dotado de coerência interna, completude e hierarquia definida. Sem dúvida, já se desenvolvia em Roma a capacidade de se despregar das idiossincrasias da concretude dos fatos, em favor do pensamento abstrato. Nesse sentido, já se encontra, na seguinte sentença de Ulpiano, um dos cânones da interpretação, qual seja: o desapego à letra da lei e a busca da mens legis.

Ulpiano já afasta o tratamento do Direito como realidade fática, ontológica, desvinculando a legis da verba. Veja-se que, em grego, o vocábulo que designa razão e palavra é o mesmo: nomos. A inteligência que existe nesta sentença de Ulpiano consiste, propriamente, em explicitar que, em língua latina, a legis é uma expressão, um produto da
razão e não se resume à sua expressão material. Se, em grego, nomos pode significar essa díade razão/palavra, o mesmo não se dá em latim. Ulpiano consagrou a separação da ideação racional que envolve o fenômeno jurídico, da materialidade de sua expressão verbal.

Contudo, é a definição de regra jurídica de Paulo aquela que melhor expressa a dissociação entre o Direito e regra. Se o Direito nasce em Roma, como fenômeno normativo que se aparta da moral, a ideia de Direito não poderia identificar-se à ideia de regra. Regras já existiam, quer de conteúdo religioso, quer de conteúdo moral. Contudo, o Direito avança em direção a um conceito de justiça.

Procurando desvendar a estrutura do desenvolvimento histórico das fontes do direito romano, cotejando com o desenvolvimento das estruturas políticas da Roma Antiga, desde a Roma dos Reis, até o Império.

Nesta perspectiva inicial, cuida-se apenas de apresentar, de modo superficial, algumas dessas fontes e sua relação com a formação da ideia de justiça. O surgimento e desenvolvimento de cada uma delas serão ulteriormente analisados. Trata-se, pois, neste caso, de apresentar o desenvolvimento e maturação da ideia de justiça, sem, por hora, se deter no desenvolvimento e datação histórica das fontes.

Embora seja a lei a principal fonte de expressão, isto é, a forma do Direito, concebe Javoleno que não cabe ao Direito definir, fixar. O Direito, mais uma vez, surge como uma ordem axiológica e deontológica, ou seja, valora as condutas e sobre sua valoração impõe condutas. Não se trata, pois, de uma ordem de pensamento descritiva, ontológica.

Ao Direito não cabe definir. Não apenas em função da volatilidade das circunstâncias sociais, mas também em função de sua própria natureza. A norma jurídica apenas define a hipótese-de-fato, sua função precípua é atrelar a essa descrição uma consequência jurídica. Somente com Kant essa realidade axiológica do Direito tornar-se-ia clara. O que hoje se nos parece uma obviedade, ao tempo de sua afirmação no panteão das ordens de conduta ética representou um passo decisivo.

Cícero, em seu tratado das leis, é pioneiro em definir a lei como produto da razão (embora ainda trate da razão divina). Trata-se do jusnaturalismo de matriz cosmológica, presente na Grécia, que agora se transmuta para outro fundamento de validade: Deus. Não obstante, já se reconhece que o Direito é uma realidade valorativa; cria, portanto, proposições deontológicas, através de juízos que, quanto à relação, são considerados hipotéticos (ainda que não estejam diretamente expressos na forma hipotética) e expressam um dever-ser. Já em Roma percebe-se que o Direito não pode manifestar-se através de juízos assertórios ou necessários, porque prescreve condutas.

O grande edifício jurídico ocidental que começara a ser erguido em Roma foi, desde seu despertar, marcado pelo emprego da linguagem, como veículo de externalização do comando. A essa forma de expressão linguística do corpo normativo podemos, em sentido amplo, atribuir o nome de Código19. As primeiras instituições reconhecidas em Roma foram as Leis das Doze Tábuas Decenvirais, isto é, direito escrito. 

A noção de justiça, tida como noção ampla que remonta a atitudes valorativas sobre condutas, pode ser primeiro localizada nos poemas homéricos nas representações de Themis e Themistes. Quando o imperador/rei decidia uma disputa, o resultado do julgamento era tido como produto direito de inspiração divina, esse agente divino que inspirava o veredicto era justamente Themis, cuja moderna representação é a deusa da Justiça. Seu plural, Themistes, representa os vereditos em si, os julgamentos. 

Note-se, que do rei eram oferecidas sentenças e não normas. Ainda nos poemas homéricos, surge a noção de Diké, cujo conteúdo de significado flutua entre julgamento, costume e uso.
Como narra Sumner Maine, o próximo passo no desenvolvimento do Direito foi a substituição do monarca heróico, como descreve Homero, pela ascensão das aristocracias. Explique-se: a imagem do monarca sagrado, de coragem, força e sabedoria superlativas, foi gradualmente definhando com as sucessões hereditárias. Nas palavras de Sumner Maine:

Ao passo que as aristocracias orientais buscaram sua fundamentação no apelo religioso, isto é, em organizações assembleares ou eclesiásticas, no ocidente as aristocracias assumiram formas político-civis. Naquilo que tange ao universo jurídico, essas aristocracias eram, a um só tempo, os depositários e administradores da lei. Embora a imagem da inspiração divina ainda permanecesse em certa medida, o apelo desloca-se para o monopólio do conhecimento da lei. Essa aristocracia preserva o conhecimento da lei de modo a perpetuar e preservar os costumes de determinada tribo ou raça. 

Neste momento ainda se cuida da lei não-escrita, precursora da lex que surgiria em Roma.

Em várias partes da Europa, à experiência deste Direito costumeiro e tribal seguiu-se a formação dos chamados códigos, como as já citadas Doze Tábuas Decenvirais ou o Código de Sólon e as leis de Draco, estes últimos ambos helênicos. A redução a escrito das normas, até então depositadas na sabedoria da aristocracia, representou o grande salto qualitativo dos povos ocidental-continentais, pois se ganhou em proteção contra a fraude e a depravação espontânea das instituições. Sumner Maine atribui à criação tardia do Código de Manu suas prescrições cruéis e absurdas e, de outra parte, à precoce edição das Doze Tábuas em Roma seu maior desenvolvimento em relação ao povo hindu.


A Lei das XXII Tábuas

COMPARTILHE COM SEUS AMIGOS

whatsapp twitter


^
subir