Autor(a) - Willian Hinz de Macedo

21-05-2020 14h22

Relações Contratuais em Tempos de Pandemia

Diante do atual cenário socioeconômico decorrente da crise ocasionada pela pandemia da Covid-19 e, da derradeira determinação da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca da necessidade de isolamento social, as questões atinentes às relações contratuais receberam uma evidenciação jamais vista.

Se outrora as relações contratuais eram encaradas como disputas entre os contratantes em que cada qual objetivava golpear o outro em benefício próprio, tal perspectiva merece urgente reflexão e alteração.

O momento de crise no qual estamos inseridos faz nascer uma premente necessidade de mudança de mindset, pois mais do que nunca se faz mister que tenhamos bom senso no trato das relações negociais e solidariedade coletiva nos acordos comerciais.

Conforme se defenderá ao longo deste breve artigo, as relações contratuais que estejam sendo impactadas pela crise advinda da pandemia da Covid-19, devem ser analisadas sob a ótica específica de cada contrato e sobrepesada sob um prisma ainda maior, qual seja, a função social do contrato, princípio esse que embora já constasse na legislação cível e nas análises feitas pelo Poder Judiciário, recebem neste momento uma carga de importância ainda maior dada a atual conjuntura socioeconômica.

Malgrado hajam manifestações do Poder Legislativo na tentativa de tratar todas as relações contratuais de forma uníssona, ou seja, regulamentando todas de maneira igualitária e indistinta, tal atitude se mostra incoerente e inapta a solucionar os problemas socioeconômicos que emergem neste cenário e que tendem a se intensificar ao longo da crise que começa a aflorar.
Exemplo disso é o recente Projeto de Lei nº 1179 do Senado Federali que estabelece em seus artigos 6º e 7º que:

Art. 6º - As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Art. 7º - Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.

Neste aspecto, indispensável se faz uma sucinta análise dos institutos jurídicos a que indiretamente fazem menção os referidos artigos, a saber, I- caso fortuito; II- força maior; III- teoria da imprevisão e; IV- Teoria da onerosidade excessiva.

O caso fortuito se caracteriza como sendo aquele decorrente de evento totalmente imprevisível, ao passo que a força maior se caracteriza como sendo aquele evento previsível, porém inevitável. Ambos os conceitos sendo legalmente previstos pelo art. 393 do Código Civil.

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

No que tange à teoria da imprevisão, esta se entende, em síntese, como sendo aquela situação decorrente de fato imprevisível e que tenha como consequência um desequilíbrio da equação econômico-financeira e jurídico-contratual.

Similar entendimento se encontra na teoria da onerosidade excessiva, a qual é tida também como uma situação de desequilíbrio da equação econômico-financeira, advinda de forma superveniente na relação jurídico-contratual.

Com relação às teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, denota-se que o legislador pátrio a disciplinou em diversos dispositivos do Código Civil, a exemplo dos artigos 317, 478, 479 e 480.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

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Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

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Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

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Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Ora, neste ponto imperioso se faz o seguinte questionamento:

Se o legislador pátrio criou institutos jurídicos para disciplinarem situações que causam instabilidades socioeconômicas, por exemplo, aumento da inflação, variação cambial e desvalorização ou substituição do padrão monetário, qual o real sentido do Projeto de Lei do Senado nº 1179 em excluir tais situações das teorias supramencionadas?

Exemplos de situações que vêm causando instabilidades socioeconômicas são inúmeros no atual cenário, destacando-se entre eles: I- a alta do dólar em 16% somente no mês de março de 2020, ou ainda de sua alta de quase 30% no acumulativo do ano (até o final de março 2020)ii e; II- o aumento desenfreado do desemprego, que tende a alcançar o patamar de 14,7% e baixa da expectativa do PIB brasileiro, que tende a sofrer retração de 5,3%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI)iii.

Destarte, nota-se um latente descompasso entre as proposições legislativas.

Ora o legislador institui uma proteção maior aos contratos em momentos de crise socioeconômica e, ora afasta a proteção outrora criada sem uma justificativa plausível.

É evidente que neste atual momento de crise e inúmeras incertezas os contratos se revelam como fonte de preocupação nos mais variados seguimentos, tais como, consumerista, locatício, empresarial, societário, dentre muitos outros.

Todavia, não deve competir ao legislador generalizar, de forma prepotente, o universo das relações contratuais no Brasil, mas sim respeitar o atual regramento cível/contratual e, dentro das necessidades sociais, realizar intervenções pontuais.

Volta-se ao fato de que, na atual conjuntura de crise, é necessário apurar-se as relações contratuais de forma muito singular, compreendendo que cada instrumento contratual envolve uma relação jurídica ímpar e que compete às partes, em um primeiro momento, encontrarem de forma cooperativa uma solução justa e que atenda aos princípios da boa-fé e da função social do contrato.

Reconhecendo que, neste momento de crise, caso as partes não consigam chegar a soluções consensuais quanto às relações contratuais que as envolvem, poderão valer-se das soluções alternativas de resolução de conflitos, visando solucionar seus impasses e divergências, de modo menos burocrático e mais célere que a apreciação judicial, exemplificando-se tais proposições com as seguintes alternativas:

I - Reclame Aquii;

II - Consumidor.gov,

III - mediação online;

IV - Câmaras arbitrais;

V - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC).

Por fim, caso as partes não consigam por nenhum meio encontrar uma solução consensual para reequilibrar a relação contratual que vige entre elas, cumpre salientar que dispõe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no art. 5º, inciso XXXV de nossa Constituição Federal que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ou seja, poderão as partes buscar uma rediscussão contratual por meio do Estado.

Neste sentido, cumpre salientar o brilhante entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual, por meio de seu desembargador, L. G. Costa Wagner, da 34ª Câmara de Direito Privado, ao analisar uma discussão de renegociação contratual que permeava uma locação empresarial, em sede de Agravo de Instrumento, asseverou que:

Caso infelizmente não seja alcançado esse acordo, o Judiciário, cumprindo sua missão constitucional, estará a postos para o enfrentamento da questão, hipótese em que, repito, o caso concreto deverá ser minuciosamente analisado, sem paixões nem paternalismo, para que, a partir da realidade demonstrada por cada litigante se possa buscar encontrar o ponto de equilíbrio a não desandar a cadeia produtiva da população brasileira.

(TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2069928-09.2020.8.26.0000, Relator: L. G. Costa Wagner, 34ª Câmara de Direito Privado, Data da Decisão:15/04/2020).

Salienta-se, mais uma vez, que chegou a hora de pararmos de agir de forma individualista em nossas relações obrigacionais e passarmos a nos relacionar de maneira empática e coletivista, valendo-se para tanto da boa-fé contratual e da função social do contrato.

Atenção: o conteúdo desta publicação, bem como as ideias apresentadas, não representam necessariamente a opinião desta coluna, sendo de inteira responsabilidade de seu autor.

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Willian Hinz de Macedo

Advogado. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil pelo IBMEC-SP e em Direito Contratual pela Faculdade Legale. Secretário da Comissão de Processo Civil da OAB/SP Santana e Presidente da Comissão da Jovem Advocacia da OAB/SP Santana.




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