Colaborador - Ivan Horcaio

08-03-2020 15h54

Características essenciais e existenciais do Direito Romano

A edição da Lei das XII Tábuas representa um momento de evolução do Direito, que avança rumo à universalidade explícita, tanto em sua forma escrita, quanto em seu conteúdo com a proscrição clara do privilégio. É a elevação dos mores ao plano da racionalidade. Trata-se de um passo orientado para a segurança jurídica.

Some-se a isso a superlativa valorização da figura do jurista, perpetrada em Roma. A Grécia transmitiu aos romanos o rigor do pensamento, do raciocínio analítico, que opera através do entendimento.

Sobretudo através da influência do estoicismo, notadamente com Sêneca e Plotino, o logos científico chegou até a península itálica.

Todavia, foi ali pioneiramente aplicado a um novo objeto de estudo: o Direito. Nesse desiderato, o povo romano inaugurou a valorização do jurista como figura fundamental na sociedade. O assim considerado primeiro jurista em Roma foi Cnaeus Flavius, cujo trabalho consistiu na publicação, ao redor do ano 300 a.C, das fórmulas a serem pronunciadas em juízo para a ativação do direito, isto é, as actio legis. Estas fórmulas, até então de domínio exclusivo da classe sacerdotal, agora estavam ao alcance dos demais pensadores seculares.

A fundação hipotética de Roma deu-se no século VIII a.C, no contexto de um emaranhado de povos: os latinos, etruscos e sabinos, com notada influência grega das cidades marítimas do sul da península.

Atribui-se a Rómulo, o fundador de Roma segundo os testemunhos de Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, a divisão do povo entre patrícios e plebeus, a distribuição das tribos em trinta cúrias, a criação da assembleia destas cúrias, o senado e a realeza. A figura do rei inaugurada com Rômulo é de lapidar importância para a configuração da ideia de Direito. Embora num momento inicial o Rei ainda não detivesse verdadeiras faculdades legislativas, pois as normas de conduta consistiam nos mores gentilícios, e fosse tido como uma espécie de oráculo divino, sua concepção como instituição é fundamental para a compreensão do Direito como fenômeno de poder. Nesse sentido podemos mencionar a Lex Regia (cuja expressão material que nos chega à Lex Imperii Vespasiani é de um período posterior) como elemento simbólico originário da transferência e legitimidade do poder.

Sobre essa base, Roma desenvolveu uma ordenação de condutas própria e especial, que legou ao Ocidente: o Direito.

A denominação técnica do Direito, como essa ordem exterior e positiva que impõe obediência, foi a palavra ius. A palavra ius possui etimologia obscura. Certamente não deriva de iustum ou issum, palavras que derivam de ius (raiz iugo). Linguistas modernos tendem a relacionar o termo ius ao verbo iurare ou à palavra sânscrita iaus. Essa palavra possui o sentido de saúde, felicidade, com um caráter religioso.

Essa origem sânscrita anuncia o caráter positivo do termo Direito e sua preocupação com a benignidade e indulgência social.

Embora de conteúdo indefinido, o conceito de ius conforma algo de inovador. Trata-se de um conceito novo.

A formação da consciência jurídica no mundo contemporâneo pressupõe a experiência desta consciência, isto é, pressupõe o processo pelo qual essa consciência faz experiência do conhecimento, primeiro tomado como objeto e, posteriormente, como conhecimento de si mesma. A consciência jurídica, neste passo, posiciona-se no amplo espectro da razão prática, pressupõe a dialética da razão teórica e volta-se a si mesma, fazendo uma experiência da própria consciência. 

Essa experiência da própria consciência, no nível fenomenológico, manifesta-se, historicamente, em três momentos: o homem (animal racional) na cultura grega, a pessoa de direito na cultura romana, cindida na concepção de pessoa moral na cultura cristã, e o sujeito de direito a partir da cultura moderna, operando a síntese dialética no cidadão ou indivíduo livre detentor de direitos fundamentais declarados ou positivados como vontade universal e valores universais da Revolução Francesa.

É justamente nesse momento de manifestação da consciência jurídica, que corresponde à formação da pessoa de direito, que surge o Direito como realidade intelectiva e prática diferenciada.

É preciso compreender a crise por que passava o Ocidente. A decadência da cidade grega e a ascensão do Império Romano iriam, desde logo, delimitar o ponto zero da formação jurídica ocidental. Trata-se de um momento de crise ética, em que a concepção de totalidade moral foi cindida. A percepção do vínculo que une aquele que age e quem sofre as consequências de cada conduta altera-se. Onde antes existia uma totalidade orgânica, entre homem e cidade, cede lugar à díade cidade/cidadão.

O bem agir, no contexto helênico, importava em um esforço em busca da felicidade, uma felicidade que não pode ser compreendida no âmbito individual, mas tão-somente em relação com a felicidade da cidade. Trata-se de uma realidade de imbricada coincidência entre o homem e a natureza. Já em Roma, essa totalidade sofre uma cisão, o homem agora pertence à cidade, estabelece-se, pois, um vínculo de pertinência e não. Para ele, surge o ius civile. A conduta não poderá ser aferida segundo os padrões do bom e do mau, mas do justo. A justiça assume uma conotação própria, particular, pois a moral não poderia suprir as necessidades normativas de uma cidade, que agora assume uma posição distinta do homem. Essa cisão que se opera, um movimento histórica, cultural e logicamente necessário, é a responsável pela explicitação do conceito de bilateralidade.

Esse Direito conformado em Roma haveria de possuir alguns caracteres que o fizessem, a um só tempo, diferente e superior aos demais ordenamentos de condutas. Assim, pode-se dizer, em linhas gerais, que esse conceito romano-universal de Direito é caracterizado por suas categorias essenciais, quais sejam: bilateralidade “tributiva”, exigibilidade e irresistibilidade.

Essa bilateralidade “tributiva” caracteriza o fenômeno jurídico porquanto o extrema da experiência moral. O agir moral pertence ao sujeito ativo e nele se esgota. O período helênico ainda não tem consciência de um outro-diferente-de-si. O justo moral realiza-se numa relação na qual ipseidade e alteridade estão mutuamente imbricadas; trata-se do contexto da bela totalidade da pólis grega, conforme o figura Hegel.

O agir jurídico pressupõe o reconhecimento, isto é, a percepção de um outro-igual, de uma outra consciência que impõe limites. 

O Direito necessita dessa cisão de ipseidade e alteridade para conformar um nexo que, agora, não mais pertence ao sujeito ativo e, tampouco, ao sujeito passivo, mas se configura um nexo transubjetivo.

Assim, tem-se uma bilateralidade que importa numa relação de polaridade entre sujeitos que se vinculam objetivamente mediante a chancela do Estado, para exercerem suas pretensões ou competências. A tributividade decorre da posição objetiva ocupada pela relação jurídica, na qual o Direito (Estado) confere a cada qual suas pretensões. A relação jurídica que encerra essa bilateralidade relação jurídica que encerra essa bilateralidade tributiva já é anunciada por “Ulpiano: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi”.

A justiça surge então como um valor formal, que estabelece a regra de tribuição destes valores, quer através da conexão com a vontade, como o faz Ulpiano (constans et perpetua voluntas), quer em conexão com a razão, como faz Cícero e, posteriormente, Tomás de Aquino e Kant.
 


A Existência do Direito Romano

A Lei das XXII Tábuas

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