Autor(a) - Mardson Costa

26-05-2021 19h34

O Réu é Obrigado a Produzir Prova Contra Si Mesmo?

Na noite desta quinta feira (13/05) um fato chamou a atenção numa delegacia da zona Leste de São Paulo: O delegado prende o advogado que orientou sua cliente a não depor e não fornecer a senha do seu aparelho de celular. Insatisfeito, o delegado afirmou que o causídico estava incorrendo no crime de associação criminosa haja vista que estava “apoiando o crime” (sic). Pois bem, a conduta do delegado além de estar tipificada como abuso de autoridade (Art 15, parágrafo único, inciso I e II da Lei 13.869/2019), viola diretamente o princípio da não auto incriminação, que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, cuja expressão em latim é Nemo tenetur se detegere ou Nemo tenetur se ipsum accusare ou Nemo tenetur se ipsum prodere, que numa tradução literal diz que ninguém é obrigado a produzir prova contra sí mesmo ou fornecer qualquer tipo de informação que possa o incriminar. É o que diz expressamente o art. 5º, inc. LXIII da CF/88. 

Antes de mais nada, é interessante entendermos o porquê existe esse princípio. De acordo com o professor Luiz Flávio Gomes, a razão é a seguinte:

“É da natureza do ser humano não se incriminar, lutar pela sua liberdade (inclusive pela fuga), defender-se de agressão injusta etc. Tudo deriva do instinto de conservação (da preservação da existência ou da liberdade etc.). O direito não pode remar contra a natureza. Como se vê, o direito de não auto-incriminação tem fundamento natural (instinto de preservação ou de auto-preservação, como dizia Bentham). O suspeito ou indiciado ou acusado pode até contribuir para a produção de uma prova incriminatória, mas isso fará se quiser. Obrigado ele não é, mesmo porque ele é presumido inocente”
(Luiz Flávio Gomes. Princípio da não auto incriminação).

Além da violação aos preceitos constitucionais, a conduta do delegado não encontra amparo em nenhum diploma legal. Vejamos o que diz os seguintes artigos do Código de Processo Penal: 

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Art.198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. (...)

Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;
(Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.

Como se pôde ver, está sobejamente demonstrado em nosso ordenamento jurídico que o réu pode fazer uso do silêncio para não se auto incriminar. 

Não é de hoje de que vemos programas de televisão alguns apresentadores fomentarem tal prática. Não raramente ouvimos frases do tipo “aperta o advogado”,  “tem que obrigar o advogado a falar”, e por aí vai. O que esses apresentadores não sabem é que ao proferir palavras como essas estão nada mais, nada menos que fomentando o abuso de poder, violações de direitos e garantias individuais que foram conquistados a base de muita luta. Para quem não sabe, essas práticas foram constantemente usadas durante a inquisição, que tinha como rainha das provas a confissão, e utilizavam quaisquer pretextos para que o algoz do Estado falasse o que os inquisidores queriam ouvir. O professor Luiz Flávio Gomes diz o seguinte:

A cultura civilizatória foi se posicionando gradativamente contra as atrocidades do sistema inquisitivo (procedimento secreto, desrespeito ao sistema acusatório, ausência de advogado, obrigatoriedade da confissão etc.), destacando-se nesse papel crítico (denunciador), desde logo, o iluminismo e o seu prócer máximo, que foi Beccaria (que dizia: com a tortura, enquanto o inocente não pode mais que perder, porque opondo-se à confissão e sendo declarado inocente, já sofreu a tortura, o culpado, por seu turno, pode até ganhar, se no final resiste à tortura e é declarado inocente).

De (mero) objeto de prova o investigado passou a ser sujeito de direitos, presumindo-se em seu benefício a inocência (art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789). Antes de Beccaria, claro, existem vários antecedentes importantes, merecendo destaque o do juiz inglês Dyer (citado por Jauchen), que concedeu um habeas corpus a um cidadão que havia sido forçado a prestrar juramento, que o compelia a se incriminar.

"Durante a inquisição a tortura era permitida e ainda se exigia do suspeito o juramento (conspurcatório) de que falaria a verdade (isso foi obra do papa Inocêncio III). No tempo da República romana o réu não tinha a obrigação de confessar ou de declarar. Isso começou a mudar com o Direito Canônico, que via na confissão arrependimento e expiação (submetimento a uma pena e suplício). Esse cenário sombrio para os direitos fundamentais do acusado (que monopolizou toda a Idade Média) sofreu profundas modificações (ulteriormente) durante os séculos XVII e XVIII. O art. 8º da Declaração dos Direitos de Virgínia (1774), por exemplo, já proclamava que "em todos os processos criminais o acusado não pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo".
(Luiz Flávio Gomes. Princípio da não auto incriminação).

É importante não nos calarmos perante abusos como estes, que visam retroceder o direito e sua finalidade. Não obstante, faz se mister se impor contra qualquer ato que atente a dignidade do advogado, pois como disse Sobral Pinto, a advocacia não é profissão de covar
 

Atenção: o conteúdo desta publicação, bem como as ideias apresentadas, não representam necessariamente a opinião desta coluna, sendo de inteira responsabilidade de seu autor.

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Mardson Costa

Advogado. Graduado pela Faculdade São Paulo. Possui forte atuação no âmbito do Direito Penal e Direito Processual Penal, com ênfase também na execução penal. Consultor e parecerista jurídico. Pesquisador nas áreas do Direito Constitucional e Criminologia. Pós graduando em Direito e Processo Penal.




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