Autor(a) - André Gonçalo Dias Pereira

22-02-2021 11h27

Responsabilidade Civil por Má Prática em Saúde - Breves Notas Sobre o Direito Português

Em Portugal vigora um complexo sistema de responsabilidade civil (médica) com duas jurisdições competentes e regimes jurídicos distintos, o que significa a manutenção de regimes bastante diferenciados a regular uma atividade materialmente semelhante, a prestação de cuidados de saúde. 1

No âmbito da medicina privada, em regra, será contratual a responsabilidade civil das pessoas coletivas detentoras de hospitais, clínicas ou consultórios ou dos médicos (a exercer em regime individual) pelos danos causados no âmbito do contrato de prestação de serviços médicos. Trata-se de um contrato atípico, mas consolidado na realidade jurídica nacional e internacional.2  Este contrato, embora não seja um tipo legal (porque não tem regulamentação legal própria), é um tipo social e nominado, porque como tal referido na prática e pressuposto em algumas disposições legais, isto é, trata-se de um “contrato socialmente típico inserido na categoria ampla de contratos de prestação de serviço (artigo 1.154º).

Pode haver aplicação exclusiva do regime delitual, desde logo, no que respeita a responsabilidade dos médicos pelos atos praticados em clínicas ou hospitais privados, desde que o contrato de prestação de serviços médicos tenha sido concluído com a clínica.

Porém, a jurisprudência vem entendendo que “em sede de responsabilidade civil por atos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por “ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efetiva do lesado.”3 Todavia, parece-nos que a doutrina do cúmulo mantém a sua bondade, pertinência e maior adequação ao direito em vigor. Seguindo esta tese, o paciente pode selecionar as normas que mais o ajudem:4  pode demandar danos não patrimoniais (art. 496.º), e o regime de solidariedade passiva (art. 498.º), previstas nas regras de responsabilidade extracontratual e as regras da inversão do ónus da prova (art. 799.º)5   e o prazo de prescrição (art. 309.º) de 20 anos, previstas na responsabilidade contratual. 6

Por seu turno, os Tribunais Administrativos (e Fiscais) são competentes para julgar as ações de responsabilidade civil extracontratual7  por atos praticados no âmbito dos hospitais públicos (em sentido amplo)8 . No plano substancial aplica-se a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas de direito público). Malgrado a aplicação da responsabilidade delitual, em que o prazo de prescrição é de três anos e o ónus da prova da culpa recai sobre o paciente lesado,9  este regime da Lei n.º 67/2007 satisfaz algumas das especiais exigências do Direito da Medicina: 10

1) Este regime coloca menor pressão sobre o profissional concreto. O profissional de saúde apenas responde com o seu património em caso de direito de regresso, que apenas é devido no caso de negligência grosseira, ou nas palavras da lei, se houver violado com “diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.” os seus deveres objetivos de conduta (art. 8.º, n.º 1);

2) Consagra o instituto da culpa por funcionamento anormal do serviço (art. 7.º, n.º 3 e 4), o que permite indemnizar o paciente pelos seus danos patrimoniais e não patrimoniais, mesmo que não seja identificado um concreto agente culpado; 11

3) Esta lei promove a responsabilidade institucional; permite ressarcir danos aos lesados, sem por outro lado criar uma relação de conflito direto entre o médico e o paciente, o que evita a medicina defensiva, a não assunção do erro e a não notificação do evento adverso.12

Os Direitos Humanos devem estar presentes também na área da responsabilidade civil. A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, prevê no artigo 24.º: “A pessoa que tenha sofrido um dano injustificado resultante de uma intervenção tem direito a uma reparação equitativa nas condições e de acordo com as modalidades previstas na lei.” Portugal já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em casos de responsabilidade médica, não apenas, como acontece noutras áreas, pelo atraso na justiça13 , mas também pela fraca proteção do direito à vida, pelo menos na sua dimensão procedimental.14

Não podemos olvidar que a interpretação do direito ordinário deve ser feita em conformidade com o Direito Convencional e com o Direito Constitucional. Pelo que este comando supralegal impõe uma mudança, uma transformação no Direito Civil.

Assim, os mecanismos de facilitação probatória (seja na prova da culpa, seja na prova da causalidade e da própria ilicitude) devem ser mais generosamente usados. Assim, deve defender-se uma facilitação probatória ou mesmo a inversão do ónus da prova nos seguintes casos:15   

(i) a facilitação da prova por presunções judiciais ou prova por primeira aparência;

(ii) a inversão do ónus da prova por falta de documentação ou por defeituoso cumprimento do dever de documentação; 

(iii) a inversão do ónus da prova por falta de esclarecimento; 

(iv) a inversão do ónus da prova por destruição de meios de prova;

(v) a negligência grosseira ou os erros grosseiros e a inversão do ónus da prova da causalidade (aplicado nos tribunais alemães);

(vi) a falta de organização e o recrutamento de pessoal mal preparado;

vii) a teoria do dano anormal e desproporcionado (aplicado nos tribunais espanhóis).

Por outro lado, o conceito de atividade perigosa, presente no n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil deve ser alargado, na área biomédica, e a delimitação de obrigações de resultado também deve ser mais abrangente do que tem sido até agora. Têm-se incluído, como casos de responsabilidade pelo não cumprimento de obrigações de resultado, aqueles em que o dano decorresse de defeitos das coisas, como, p. ex., dos instrumentos empregues, ou de defeitos de prestações simples, cuja margem de risco fosse irrelevante.16 

Trata-se de expedientes processuais e substanciais que poderão reenquadrar o direito da responsabilidade médica em Portugal num patamar mais conforme com o Direito Europeu dos Direitos Humanos.

 

1 - Cf. André DIAS PEREIRA, “Responsabilidade Civil: o Médico entre o Público e o Privado” in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 89 (2013), Coimbra, Universidade de Coimbra, 2014, pp. 253-304.
2 - Cf. André DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil, Publicações do Centro de Direito Biomédico, 9, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 13.
3 - Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2018 (proc. nº 7053/12.7TBVNG.P1.S1.
4 - Filipe ALBUQUERQUE MATOS, “Traços distintivos e sinais de contacto entre os regimes da responsabilidade civil contratual e extracontratual. O caso particular da responsabilidade civil médica”, in: Lex Medicinae. Revista portuguesa de direito médico, ano 11.º (2014), págs. 9-33.
5 - André G. DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Publicações do Centro de Direito Biomédico, 22, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 750. Para acesso mais simples, pode confrontar-se a versão original (com numeração de páginas não coincidente) em PEREIRA, André Gonçalo Dias, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra, 2012. (acessível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/31524
6 - Para uma análise dogmática e problematizante da matéria, apontando para uma visão inovadora sobre a matéria –  vide Nuno Manuel PINTO DE OLIVEIRA, Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica, in (I)Materiais para o Direito da Saúde, Centro de Direito Biomédico, Instituto Jurídico | Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2019, p. 25 – in https://www.centrodedireitobiomedico.org/publica%C3%A7%C3%B5es/publica%C3%A7%C3%B5es-online/imateriais-para-o-direito-da-sa%C3%BAde-ilicitude-e-culpa-na . ”
7 - Art.º 4.º, n.º 1, al. f), g) e h) do ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
8 - Incluindo hospitais do Setor Público Administrativo, do Setor Empresarial do Estado – Centros Hospitalares e Hospitais EPE (Entidade Empresarial do Estado) ou mesmo a prestação do SNS (Serviço Nacional de Saúde) em regime de PPP (Parceria Público-Privado).
9 - Cf. Rui VOUGA, A responsabilidade civil médica (decorrente de actos médicos praticados em hospitais públicos, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2018 [disponível em: WWW. < http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_ fiscal/eb_ResponsabilidadeMedica2018.pdf 
10 - André DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, p. 883.
11 - Artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro: 3 — O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço. 4 — Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.
12 - Sobre esta matéria, vide Guilherme de OLIVEIRA; recensão à obra José FRAGATA/ Luís MARTINS, O Erro em Medicina, Perspectiva do indivíduo, da organização e da sociedade, Coimbra, Almedina, 2004, in Temas de Direito da Medicina, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2005.
13 - Desde que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) iniciou funções, Portugal foi alvo de 345 processos. Em mais de 75% dos casos (262) a decisão foi desfavorável ao Estado português, tendo sido encontrada pelos juízes pelo menos uma violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A morosidade dos procedimentos judiciais nos tribunais portugueses é a principal violação apontada ao País (143).
14 - Vejam-se os casos: 1) Lopes De Sousa Fernandes c. Portugal (Requête n.º 56080/13), com decisão final pela Grand Chamber em 19 de dezembro de 2017. 2) A decisão de 25 de Julho de 2017 (caso Carvalho Pinto de Sousa c. Portugal); 3) Decisão de 31 de janeiro de 2019 da Grand Chamber - Fernandes de Oliveira v. Portugal [GC].
15 - Para justificação e desenvolvimento, cf. André DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, p.780 a 788.
16 - Respetivamente Ac. do STJ de 4 de março de 2008 (Fonseca Ramos), Cf. acórdão do STJ de 11 de Julho de 2006 (Nuno Cameira), apud PINTO OLIVEIRA, Ilicitude e Culpa, 2019, p. 94-95.
 

Atenção: o conteúdo desta publicação, bem como as ideias apresentadas, não representam necessariamente a opinião desta coluna, sendo de inteira responsabilidade de seu autor.

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André Gonçalo Dias Pereira

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Diretor do Centro de Direito Biomédico
Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
Foi membro da CEIC – Comissão de Ética para a Investigação Clínica
Presidente da Comissão de Ética da AIBILI
Membro da Comissão de Ética do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses
Membro da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Coimbra
Vice-Presidente da ALDIS – Associação Lusófona de Direito da Saúde
Associado do IBERC – Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil




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