Terras Regularmente Demarcadas

As terras regularmente demarcadas no contexto jurídico brasileiro referem-se, principalmente, às terras indígenas que foram objeto de um processo legal de demarcação por parte do Estado. Esse tema é regulado pela Constituição Federal de 1988 e por legislação infraconstitucional, como o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) e outros dispositivos normativos que buscam proteger os direitos territoriais das comunidades indígenas, reconhecendo-lhes um espaço fundamental para a preservação de suas culturas, tradições e modos de vida.

1. Conceito de Terras Indígenas

De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal, as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são “bens da União”, sendo a eles reconhecido o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Essa disposição reafirma o caráter especial das terras indígenas, as quais não são propriedade privada dos indígenas, mas sim da União, com direito garantido de uso e ocupação vitalícia para os povos indígenas.

Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

A demarcação das terras indígenas é um processo administrativo realizado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), destinado a identificar, delimitar e oficializar as áreas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. Esse processo tem o objetivo de garantir a proteção dessas terras contra invasões, degradações ambientais e a usurpação dos recursos naturais.

2. Aspectos Jurídicos da Demarcação

O procedimento de demarcação segue as diretrizes estabelecidas pelo Decreto nº 1.775/96 e envolve as seguintes etapas principais:

– Estudo de Identificação e Delimitação: a FUNAI conduz estudos antropológicos, etno-históricos, ambientais, cartográficos e fundiários para identificar as terras ocupadas tradicionalmente por determinado grupo indígena. Esse estudo é essencial para delimitar a área conforme os critérios da ocupação tradicional;

– Delimitação e Proposta de Demarcação: após a conclusão dos estudos, a FUNAI elabora um relatório indicando a delimitação da terra indígena. Esse relatório é submetido ao Ministro da Justiça, que pode aprovar ou contestar a proposta;

– Demarcação Física: com a aprovação ministerial, a terra indígena é efetivamente demarcada em campo, por meio da instalação de marcos físicos que indicam os limites da área reconhecida;

– Homologação Presidencial: a etapa final do processo é a homologação da demarcação pelo Presidente da República, que confere ao processo de demarcação o caráter definitivo. Após a homologação, as terras indígenas ficam sob tutela jurídica, assegurando a proteção de sua integridade territorial.

3. Proteção Constitucional das Terras Indígenas

O regime constitucional das terras indígenas garante aos povos originários não apenas o direito à posse, mas também o usufruto exclusivo dos recursos naturais presentes na área. A ocupação indígena é considerada um direito originário, pré-existente à formação do próprio Estado brasileiro. Essa prerrogativa foi amplamente reforçada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), particularmente no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição nº 3.388/RR), onde foram estabelecidos parâmetros para a interpretação do artigo 231 da Constituição.

Uma das teses firmadas nesse julgamento é a chamada “teoria do indigenato”, que reconhece os direitos territoriais indígenas com base na ocupação tradicional e na continuidade cultural desses povos. O STF também reafirmou que o Estado deve proteger as terras demarcadas contra a invasão de terceiros, garantindo a manutenção do modo de vida indígena.

4. Função Social das Terras Indígenas

O reconhecimento das terras indígenas, além de assegurar direitos fundamentais aos povos originários, também atende a um imperativo de função social da propriedade, conforme previsto no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição. A posse indígena cumpre uma função social ao promover a preservação de ecossistemas, a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados a esses territórios, sendo as comunidades indígenas verdadeiras guardiãs ambientais.

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

……………

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

……………….

As terras regularmente demarcadas estão submetidas a um regime jurídico especial, que impede a alienação dessas áreas, sua exploração econômica por não indígenas e a degradação dos recursos naturais, salvo em situações excepcionais, como a exploração de recursos hídricos e minerais, que exige autorização legislativa específica e o consentimento dos povos indígenas envolvidos.

5. Conflitos e Desafios na Demarcação de Terras

Apesar da clareza jurídica, o processo de demarcação de terras indígenas é frequentemente objeto de disputas. A questão fundiária no Brasil envolve interesses diversos, incluindo grandes produtores rurais, empresas mineradoras, governos estaduais e municipais, além dos próprios indígenas. A judicialização de processos de demarcação é comum, e muitos grupos indígenas ainda aguardam a conclusão de processos demarcatórios há décadas.

Um dos principais desafios recentes no campo jurídico tem sido a tese do marco temporal, segundo a qual os direitos territoriais indígenas só seriam garantidos para terras que estivessem sob posse indígena na data da promulgação da Constituição de 1988. Esse entendimento é altamente contestado pelos povos indígenas, uma vez que muitas comunidades foram forçadamente removidas de suas terras antes dessa data, em razão de conflitos e pressões externas. O Supremo Tribunal Federal está em vias de decidir sobre a constitucionalidade dessa tese, com implicações diretas para a demarcação de novas terras.

Conclusão

As terras regularmente demarcadas são fundamentais para a proteção dos direitos territoriais dos povos indígenas e para a preservação de suas culturas e tradições. A Constituição Federal de 1988 estabelece um regime jurídico robusto para a proteção dessas terras, que inclui o direito ao usufruto exclusivo e à posse permanente. No entanto, o processo de demarcação enfrenta desafios significativos, que envolvem tanto questões fundiárias quanto interesses econômicos e políticos. A garantia desses direitos é essencial para a consolidação do Estado democrático de direito e para a promoção da justiça social no Brasil.

Equipe Editorial Vade Mecum Brasil

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